Incentivada
por Abbé Pièrre e Dom Helder Câmara a conhecer as populações pobres do
mundo, a psicóloga suíça veio para o Brasil em 1972
onde fundou a Associação Brasileira de Amparo à Infância, no Paraná. Em
entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, ela fala sobre sua
trajetória e, principalmente, sobre suas lutas em prol dos direitos dos
mais pobres. Atualmente, ela está voltada à questão da água e, por isso,
foi entender a situação do povo que depende do rio São Francisco.
“Viajei várias vezes para aquela região e vi como este rio está
morrendo. A transposição, ou seja, retirada de mais água deste rio, é um
problema muito grande para a população ribeirinha, para as comunidades
indígenas e para a natureza. A construção de grandes canais traz
destruição para os biomas da catinga, do cerrado e para as comunidades
indígenas”, relatou.
Segundo ela, a partir dos inúmeros projetos e obras para construção
de hidrelétricas no Brasil, o país “está na direção de uma ação
destruidora”. Spiller considera isso uma violência contra os rios que
criam diversos problemas com os países vizinhos. “A hidrelétrica do Rio
Madeira, por exemplo, cria problemas para a Bolívia, pois os peixes não
conseguem fazer a Piracema”. Ao analisar como a questão da água será
tratada pelos candidatos à presidência, Marianne afirma: “Um candidato
pensa um pouco mais no lado ecológico do que o outro, mas a grande
direção não é favorável à preservação da natureza”.
Convite para a entrevista.
IHU On-Line – Quando e porque a senhora veio para o Brasil?
Marianne Spiller – Desde a minha infância na Suíça,
me preocupei com as populações pobres. Em 1972, decidi deixar meu país
para conhecer melhor essa situação no mundo. Eu tinha professores muito
competentes, como o religioso francês Abbé Pièrre e Dom Helder Câmara,
arcebispo brasileiro, que divulgou no mundo inteiro que “a pobreza é um
escândalo”. Estes dois homens me indicaram o Brasil.
IHU On-Line – Como surgiu essa sua relação e interesse por povos na condição de pobreza?
Marianne Spiller – São coisas impossíveis de explicar. Eu já nasci com isso. É uma espécie de destino, uma vocação.
IHU On-Line – No início seu trabalho era
diretamente com crianças e jovens que estavam envolvidos com as drogas.
Você pode nos contar um pouco da história da Associação Brasileira de
Amparo à Infância?
Marianne Spiller – Em 1979, a Associação Brasileira
de Amparo à Infância foi fundada no Brasil por um grupo de amigos
brasileiros e suíços. A maioria conhecia bem o Brasil e queria
contribuir com a redução da pobreza. Com fé e coragem, começamos no ano
de 1981, na área rural no sul de Curitiba, com uma creche para crianças
de famílias pobres.
IHU On-Line – Hoje você está voltada para a questão da água. Porque começou a se preocupar com esse tema?
Marianne Spiller – Descobri que não se pode apoiar a
libertação dos pobres sem se preocupar com a situação dos recursos
naturais. Os pobres são os primeiros que sofrem, de maneira intensa, com
as consequências da destruição e privatização dos recursos naturais
pelas grandes empresas transnacionais. Comecei me preocupando com a
atuação da Nestlé, que tem origem na Suíça, e entrei neste assunto me
tornando uma ativista contra a privatização da água, contra o
agronegócio. É eticamente condenável que a água, que deve ser um direito
para todos os seres, seja usada como negócio, para a ganância de
poucos.
IHU On-Line – Você esteve com Dom Cappio, certo? Qual a situação, neste momento, do povo que vive do Rio São Francisco?
Marianne Spiller – Viajei várias vezes para aquela
região e vi como este rio está morrendo. A transposição, ou seja,
retirada de mais água deste rio, é um problema muito grande para a
população ribeirinha, para as comunidades indígenas e para a natureza. A
construção de grandes canais traz destruição para os biomas da catinga,
do cerrado e para as comunidades indígenas.
IHU On-Line – O que representa o fato de a ONU ter considerado a água esta semana como um direito do ser humano?
Marianne Spiller – Em março do ano passado,
participei do 5º Fórum Mundial das Águas, que ocorreu em Istambul, na
Turquia. O evento foi organizado pelo Conselho Mundial da Água, criado
pelas grandes empresas transnacionais, que trabalham com o hidronegócio,
algo que dá muito dinheiro. Inclusive, amigos meus na Alemanha estão
trabalhando na conclusão de um filme chamado “A água faz dinheiro”. Vi
como as delegações sul-americanas, coordenadas por Bolívia e Uruguai,
tentavam pressionar o Fórum para que o acesso à água fosse considerado
um direito humano.
Mas o Fórum não aceitou isso. A declaração final afirmava que o
acesso à água é uma necessidade básica, mas não um direito humano. Houve
uma declaração alternativa, assinada por alguns países, como Bolívia
Uruguai e Cuba. Entre março de 2009 e o que ocorreu ontem na ONU, foi um
grande passo, uma vitória impulsionada por ONGs e forças da sociedade
civil de alguns país. O curioso é que o país que mais lutou para isso
foi o mais pobre da América Latina: a Bolívia. Parece que são os pobres
que estão libertando a natureza da ganância e que têm a força da
verdade. Enquanto as transnacionais e todos que destroem a natureza
trabalham com a mentira.
IHU On-Line – Que avaliação a senhora faz da Conferência Mundial dos Povos sobre as mudanças climáticas e pelos direitos da “Madre Tierra”?
Marianne Spiller – Foi simplesmente fantástico. Eram
esperadas entre cinco e dez mil pessoas, mas compareceram 35 mil. No
dia 22 de abril, Dia da Madre Terra, parecia que Cochabamba era o centro
do mundo, tomado pelo entusiasmo. Em todos os lugares podia-se ver
cartazes com a frase: “A Terra não pertence ao homem. O homem pertence à
Terra.” Isso é um claro paradigma de origem indígena, muito diferente. É
o conceito de que o homem não é o dono da natureza, mas uma parte dela.
Penso que o antropocentrismo é o mal que está na raiz deste capitalismo
destruidor, no qual o homem se sente no direito de destruir a natureza.
IHU On-Line – Você afirmou logo após o evento
que a conferência foi um momento de descoberta de uma cultura originária
que não conhecíamos. Que cultura era essa?
Marianne Spiller – Os povos originários da Bolívia e
Equador têm um conceito muito diferente da Pátria Mãe, eles têm uma
relação de amor à Mãe Terra. O discurso mais radical foi de um chanceler
que disse “que, no capitalismo o mais importante é o dinheiro, para o
socialismo é o homem. Para nós, povos originários indígenas, o mais
importante são as montanhas, as florestas, os rios. O homem vem depois”.
Isso é muito interessante e traz uma visão totalmente diferente. O
futuro tem de ir para esse lado. Evo Morales disse que “no século
passado lutamos muito pelos direitos do homem, dos negros, dos
homossexuais, das mulheres, das crianças, e de todos os povos
marginalizados.” Este século, entretanto, será da Mãe Terra. Se não
aumentarmos o respeito à natureza não haverá um futuro bom.
IHU On-Line – A ideia do “viver bem” poderia ser implementada em toda a América Latina?
Marianne Spiller – Com certeza, em todo o mundo.
Viver bem não quer dizer viver melhor. A mola mestra deste capitalismo
destruidor é a concorrência. Você precisa ser melhor que o outro. O
viver bem é diferente, é comunitário, é uma construção coletiva da
realidade. Há também valores, como os que estão na nova Constituição da
Bolívia, como “não mentir”. É algo tão simples, mas de suma importância,
pois muita coisa em nossa sociedade se baseia na mentira. Outro valor
na Constituição é “não ser preguiçoso”. O mais importante é não cair na
ganância de ter mais e mais, mas sim de ser feliz com uma vida simples e
com o suficiente. Se todos quiserem tudo, precisaremos ter vários
planetas.
IHU On-Line – Como a senhora vê a situação dos rios no Brasil a partir das propostas levantadas pelos candidatos à presidência?
Marianne Spiller – O Brasil está na direção de uma
ação destruidora, isso fica evidente quando observamos Belo Monte e a
epidemia de hidrelétricas que começaram a ser pensadas ainda na
ditadura. Tudo isso é uma violência para os rios e cria muitos problemas
transfronteiriços. A hidrelétrica do Rio Madeira, por exemplo, cria
problemas para a Bolívia, pois os peixes não conseguem fazer a Piracema.
Um candidato pensa um pouco mais no lado ecológico do que o outro, mas a
grande direção não é favorável à preservação da natureza. O Brasil está
na contramão da história.
IHU On-Line – Está na contramão também em relação à pobreza?
Marianne Spiller – Durante estes anos houve mudanças
muito grandes na relação do Estado junto à pobreza, que entrou, pela
primeira vez, nas preocupações governamentais. Ninguém pode tirar esse
mérito do governo do presidente Lula. Esses programas do Governo Federal
são um grande avanço. Só o fato de ter registrado a existência de quase
todas as famílias pobres do Brasil já é uma grande evolução, mas
precisamos de mudanças mais profundas. Precisamos de urgência de reforma
agrária uma e redução das propriedades agrícolas. Mas a preocupação
social ainda é maior que a ambiental.
IHU On-Line – A senhora também integra a Campanha Internacional para criação de uma Corte Penal Internacional?
Marianne Spiller – Tenho amizade com Adolfo Pérez
Esquivel, premio Nobel da Argentina e presidente de uma Academia de
Ciência em Veneza. Essa Academia está se esforçando para levar a frente
uma campanha pela criação de uma corte internacional por penas de meio
ambiente. Há muitos crimes contra a natureza que lesam a humanidade e
fazem sofrer milhões de pessoas, mas não existe um tribunal
especializado. É uma iniciativa muito importante. Há um grupo de juízes
na Inglaterra que tem o mesmo objetivo. E a terceira ação é do Evo
Morales, para criar uma justiça climática internacional. Mas não será
fácil, pois tem de passar pela ONU e por mudanças no estatuto de Roma,
que criou um tribunal internacional.
Fonte: Mercado Ético
A Marianne é dessas pessoas raras que têm extraordinária energia e se entregam de corpo e alma à causa que abraçaram.
ResponderExcluirFelizes somos nós brasileiros por ela haver escolhido viver em nosso país e nos ajudar no combate diário contra a fome, a injustiça e a exclusão de milhões de pessoas, que hoje vivem à margem da vida com um mínimo de dignidade.
Muito obrigado Marianne, que Deus lhe pague!