A
maior crise econômica mundial desde 1929 eclodiu publicamente em 2008. Ela foi
produzida pelas políticas neoliberais e pela globalização econômica
implementadas nos últimos 30 anos. Em poucos dias, os dogmas neoliberais foram
derrubados e as consequências da economia de mercado desregulada ficaram mais
evidentes: desemprego, exclusão, aumento da desigualdade social, violência. Tudo
isso aliado a uma enorme destruição ambiental. Mesmo desnudado, porém, o capital
financeiro não desistiu do seu caminho.
A saída da crise mundial não pode ser a retomada do crescimento econômico
anterior, apoiado na lógica “produtivista-consumista”: a saída é romper com o
modelo econômico baseado na exploração e no lucro e o estabelecimento de um
modelo de sociedade baseado em uma economia solidária e ecológica, na relação
respeitosa com a natureza e na busca do bem viver (1), produzindo aquilo que é
necessário e evitando o esgotamento dos recursos naturais.
Nós temos um país com riquezas naturais invejáveis, dotado de uma enorme
biodiversidade, com terra agricultável em quantidade, com uma imensidão de mão
de obra apta a trabalhar – o principal recurso para o desenvolvimento – e com um
parque produtivo que foi atingido, mas não destruído pelas políticas
neoliberais. Somos banhados pelo sol o ano inteiro, temos 13,8% da água doce do
mundo e temos ventos: ou seja, poderíamos ter toda a nossa energia “limpa”,
solar, eólica, hídrica (2).
É mais que nunca o momento de pensar um modelo de desenvolvimento centrado
nas necessidades humanas, que garanta a reprodução da natureza, evite o
desperdício e não esgote os bens de que precisamos para viver. Um
desenvolvimento que esteja voltado para a vida, e não para a maximização do
consumo.
Nosso objetivo é a vida, e não a produção: a produção é um meio, não um fim.
O que importa é melhorar as condições de vida, o viver bem, juntos, e trabalhar
para obter o que é necessário para atingir esse objetivo. É preciso responder às
necessidades sociais: alimentação, habitação, vestuário, trabalho, saúde,
educação, transporte, cultura, lazer, segurança. Temos necessidade também de
conhecer, aprender, ler, estudar. Temos necessidade de música, de dança, de
esporte, de atividades físicas e espirituais (3).
Precisamos pensar outra concepção de desenvolvimento, centrado na satisfação
dessas necessidades. Desenvolvimento não é sinônimo de crescimento econômico,
como afirma a teoria econômica dominante, difundida pela grande mídia.
Desenvolvimento não é sinônimo de “produtivismo- consumismo”. Desenvolvimento é
desdobrar as potencialidades existentes nas pessoas e na sociedade para que
tenham vida e possam viver bem (4).
Isto implica em garantir proteção social para que elas sintam-se seguras face
às dificuldades imprevistas que podem atingir qualquer ser humano. O que é
necessário para conseguir esses bens? Como obter aquilo de que precisamos sem
destruir as condições que nos permitem viver no planeta, sem acabar com a água,
os peixes, os animais, a terra cultivável, as florestas, a diversidade cultural,
social e biológica? Como organizar a sociedade de modo que haja trabalho para
todos?
Há uma forte tomada de consciência, nos últimos anos, do processo acelerado
de desequilíbrio das condições climáticas, do aquecimento global, da destruição
de inúmeras espécies, da redução de nossas florestas e dos riscos que essas
mudanças trazem para a humanidade. Fenômenos naturais extremos têm atingido
inúmeros países, inclusive o Brasil, causando destruição e morte. Por outro
lado, embora cresça essa consciência, há uma intensa campanha para desacreditar
os dados relativos às mudanças climáticas.
Os que financiam essa campanha são aqueles que querem manter suas atividades
lucrativas – entre outras, empresas petrolíferas e carboníferas – mesmo em
detrimento da humanidade (5).
Aqui está o cerne da questão. Não basta fazer coleta seletiva de lixo, evitar
o desperdício de água, substituir os carros a gasolina por carros elétricos. Na
verdade, o que é preciso mudar, para interromper a destruição do planeta, é o
tipo de desenvolvimento. Desde o século passado, a economia é centrada na
produção crescente e no consumo de bens. O objetivo prioritário da economia
dominante é o crescimento econômico: o critério universal de avaliação de um
país é o PIB (Produto Interno Bruto) – quanto mais produzir, quanto mais vender,
melhor é o país, melhor está sua economia (6).
Nessa toada, vão embora os recursos naturais – a água, a terra fértil, o ar
saudável, as árvores, os minérios etc. Os especialistas dizem que precisamos de
mais de uma Terra para garantir o nível de consumo atual – sendo 80% desse
consumo concentrado nos países desenvolvidos, que têm apenas 20% da população
total. É fundamental mudar isso. Mais que fundamental, é urgente, inadiável: se
mantivermos o sistema atual, a humanidade desaparecerá (7). No dizer de Leonardo
Boff, “a Terra pode sobreviver sem nós, mas nós não podemos viver sem a
Terra”.
Esta é a preocupação do economista Joan Martínez Allier, no livro Da economia
ecológica ao ecologismo popular (1998) (8). Segundo esse autor – que tem em
Georgescu Roegen o precursor dessa linha de pensamento –, economia ecológica “é
uma economia que usa os recursos renováveis (…) com um ritmo que não exceda sua
taxa de renovação e que usa os recursos esgotáveis (…) com um ritmo não superior
ao de sua substituição por recursos renováveis” (9).
Lester Brown publicou, em 2001, a obra Ecoeconomia: construindo uma economia
para a Terra (10). Depois de mostrar a destruição que vem ocorrendo e como ela
vai se acelerar se não mudarmos, ele propõe outro tipo de economia: desde a
mudança da matriz energética até a indústria que deveríamos ter, a agricultura
etc. (11). Esses e vários outros pensadores estão estudando, buscando e propondo
outras formas de viver e trabalhar.
A Via Campesina, organização mundial que reúne um conjunto de movimentos de
trabalhadores rurais, propõe um modelo de agricultura radicalmente diferente
deste dominante: se opõe à dominação das multinacionais, ao agronegócio, aos
transgênicos e à dependência dos agrotóxicos. Eles exigem a reforma agrária para
que todos os trabalhadores tenham terra e condições para plantar. E propõem um
modelo apoiado na agroecologia, nos alimentos orgânicos, na produção
diversificada e na agricultura familiar (12).
Crescimento brasileiro
Precisamos reconceituar o desenvolvimento. Não basta acabar com o
neoliberalismo e substituí-lo pelo keynesianismo. O capitalismo neoliberal é
mais destrutivo que o keynesiano, sem dúvida. O capitalismo keynesiano visa ao
pleno emprego – um objetivo que compartilhamos – e permite constituir um Estado
de bem-estar social. Mas, para isso, supõe uma produção e um consumo cada vez
maiores, de massa.
Hoje, no entanto, esta saída não é mais possível. Para superar a crise de
2008, o governo brasileiro incentivou o consumo, reduzindo ou eliminando
impostos e aumentando o crédito, para que as pessoas comprassem mais carros,
geladeiras, máquinas de lavar. Essas medidas “dinamizaram” a economia: houve
crescimento, o Brasil superou a crise mais rapidamente que outros países. Mas
que economia? A serviço de quem? E qual o preço a pagar em termos de destruição
das condições que garantem a vida? É isso que precisa ser mudado.
Queremos um desenvolvimento que nos dê vida, e não produtos. Temos de
produzir aquilo que precisamos, não aquilo que as empresas querem que consumamos
para atender à sua ganância por lucro. Não precisamos de um celular novo por
ano, de uma televisão a cada Copa do Mundo, de mais ruas, avenidas e viadutos
para garantir a venda de mais carros. Não precisamos de máquinas de lavar, que
quebram depois de um ano, ou computadores, que ficam obsoletos depois de alguns
meses. Tudo aquilo que precisamos pode ser feito de modo a ter longa duração, a
poder ser aperfeiçoado sem ser trocado, a ser consertado em vez de eliminado.
Precisamos de reengenharia, sim, mas para que nossas indústrias dediquem-se a
utilizar o que já existe para produzir coisas novas e úteis.
Não precisamos de propaganda para nos convencer a comprar um novo produto,
muitas vezes supérfluo. Aquilo de que precisamos não supõe propaganda: basta a
informação sobre sua finalidade e as substâncias que contêm. Com isso, saberemos
decidir por nós mesmos qual dos produtos nos convém.
Sim, é verdade: “outro mundo é possível” – e ele será melhor que o atual.
(1) “A expressão Viver Bem, própria dos povos indígenas da Bolívia, significa
em primeiro lugar ‘viver bem entre nós’. Trata-se de uma convivência comunitária
intercultural e sem assimetrias de poder (…). É um modo de viver sendo e
sentindo-se parte da comunidade, com sua proteção e em harmonia com a natureza
(…), diferenciando-se do ‘viver melhor’ ocidental, que é individualista e que se
faz geralmente a expensas dos outros e, além disso, em contraponto à natureza”.
Isabel Rauber, apud http://isabelrauber.blogspot.
com. Acesso em 22/08/2010.
(2) Mas não com megaprojetos de usinas hidrelétricas, destruidores das
populações e do meio ambiente. Se fosse feita a repotencialização das usinas
existentes e se implementassem a produção de energia eólica e solar, teríamos
energia suficiente para tudo aquilo de que o país necessita.
(3) Cf. Michael Lowy, “Ecosocialism, democracy and planification”, 2007 (apud
www.europe-solidaire.
org); Ecologia e socialismo (São Paulo, Cortez,
2005); Marcos Arruda, Tornar real o possível, Petrópolis, Vozes, 2006.
(4) Cf. Marcos Arruda, op.cit., 2006.
(5) Cf. Paul Krugman. “Quem assa o planeta?”. New York Times. 25/07/2010.
(6) Cf. Carlos Lopes, Ignacy Sachs e Ladislau Dowbor, “Crises e oportunidades
em tempos de mudança”, 2010, 15 págs. Disponível em www.dowbor.org.
(7) Cf. Jared Diamond, Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o
sucesso. Rio de Janeiro, Record, 2009.
(8) B lumenau, Ed. da FURB .
(9) Idem, p. 268
(10) E arth Policy Institute, W. W. Norton & Company.
(11) E m 2009, ele publicou o livro Plan B 4.0 – Mobilizing to Save
Civilization. Disponível em www.earth- policy.org.
(12) “Plataforma da Via Campesina para a agricultura”. Disponível em www.mst.org.br.
Acesso em 26/05/2010
* Ivo Lesbaupin é sociólogo, membro
do Iser Assessoria e da direção nacional da Abong (Associação Brasileira de
ONGs). (Le Monde Diplomatique
Brasil)
Fonte: Mercado Ético, 14/01
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Pensar Eco agradece sua visita!
Comente, sugira, critique, enfim, participe!!! Isso é muito importante!
Abs,
Érica Sena
Pensar Eco