segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Por uma nova concepção de desenvolvimento - Ivo Lesbaupin

A maior crise econômica mundial desde 1929 eclodiu publicamente em 2008. Ela foi produzida pelas políticas neoliberais e pela globalização econômica implementadas nos últimos 30 anos. Em poucos dias, os dogmas neoliberais foram derrubados e as consequências da economia de mercado desregulada ficaram mais evidentes: desemprego, exclusão, aumento da desigualdade social, violência. Tudo isso aliado a uma enorme destruição ambiental. Mesmo desnudado, porém, o capital financeiro não desistiu do seu caminho.

A saída da crise mundial não pode ser a retomada do crescimento econômico anterior, apoiado na lógica “produtivista-consumista”: a saída é romper com o modelo econômico baseado na exploração e no lucro e o estabelecimento de um modelo de sociedade baseado em uma economia solidária e ecológica, na relação respeitosa com a natureza e na busca do bem viver (1), produzindo aquilo que é necessário e evitando o esgotamento dos recursos naturais.

Nós temos um país com riquezas naturais invejáveis, dotado de uma enorme biodiversidade, com terra agricultável em quantidade, com uma imensidão de mão de obra apta a trabalhar – o principal recurso para o desenvolvimento – e com um parque produtivo que foi atingido, mas não destruído pelas políticas neoliberais. Somos banhados pelo sol o ano inteiro, temos 13,8% da água doce do mundo e temos ventos: ou seja, poderíamos ter toda a nossa energia “limpa”, solar, eólica, hídrica (2).

É mais que nunca o momento de pensar um modelo de desenvolvimento centrado nas necessidades humanas, que garanta a reprodução da natureza, evite o desperdício e não esgote os bens de que precisamos para viver. Um desenvolvimento que esteja voltado para a vida, e não para a maximização do consumo.

Nosso objetivo é a vida, e não a produção: a produção é um meio, não um fim. O que importa é melhorar as condições de vida, o viver bem, juntos, e trabalhar para obter o que é necessário para atingir esse objetivo. É preciso responder às necessidades sociais: alimentação, habitação, vestuário, trabalho, saúde, educação, transporte, cultura, lazer, segurança. Temos necessidade também de conhecer, aprender, ler, estudar. Temos necessidade de música, de dança, de esporte, de atividades físicas e espirituais (3).

Precisamos pensar outra concepção de desenvolvimento, centrado na satisfação dessas necessidades. Desenvolvimento não é sinônimo de crescimento econômico, como afirma a teoria econômica dominante, difundida pela grande mídia. Desenvolvimento não é sinônimo de “produtivismo- consumismo”. Desenvolvimento é desdobrar as potencialidades existentes nas pessoas e na sociedade para que tenham vida e possam viver bem (4).

Isto implica em garantir proteção social para que elas sintam-se seguras face às dificuldades imprevistas que podem atingir qualquer ser humano. O que é necessário para conseguir esses bens? Como obter aquilo de que precisamos sem destruir as condições que nos permitem viver no planeta, sem acabar com a água, os peixes, os animais, a terra cultivável, as florestas, a diversidade cultural, social e biológica? Como organizar a sociedade de modo que haja trabalho para todos?

Há uma forte tomada de consciência, nos últimos anos, do processo acelerado de desequilíbrio das condições climáticas, do aquecimento global, da destruição de inúmeras espécies, da redução de nossas florestas e dos riscos que essas mudanças trazem para a humanidade. Fenômenos naturais extremos têm atingido inúmeros países, inclusive o Brasil, causando destruição e morte. Por outro lado, embora cresça essa consciência, há uma intensa campanha para desacreditar os dados relativos às mudanças climáticas.

Os que financiam essa campanha são aqueles que querem manter suas atividades lucrativas – entre outras, empresas petrolíferas e carboníferas – mesmo em detrimento da humanidade (5).
Aqui está o cerne da questão. Não basta fazer coleta seletiva de lixo, evitar o desperdício de água, substituir os carros a gasolina por carros elétricos. Na verdade, o que é preciso mudar, para interromper a destruição do planeta, é o tipo de desenvolvimento. Desde o século passado, a economia é centrada na produção crescente e no consumo de bens. O objetivo prioritário da economia dominante é o crescimento econômico: o critério universal de avaliação de um país é o PIB (Produto Interno Bruto) – quanto mais produzir, quanto mais vender, melhor é o país, melhor está sua economia (6).

Nessa toada, vão embora os recursos naturais – a água, a terra fértil, o ar saudável, as árvores, os minérios etc. Os especialistas dizem que precisamos de mais de uma Terra para garantir o nível de consumo atual – sendo 80% desse consumo concentrado nos países desenvolvidos, que têm apenas 20% da população total. É fundamental mudar isso. Mais que fundamental, é urgente, inadiável: se mantivermos o sistema atual, a humanidade desaparecerá (7). No dizer de Leonardo Boff, “a Terra pode sobreviver sem nós, mas nós não podemos viver sem a Terra”.

Esta é a preocupação do economista Joan Martínez Allier, no livro Da economia ecológica ao ecologismo popular (1998) (8). Segundo esse autor – que tem em Georgescu Roegen o precursor dessa linha de pensamento –, economia ecológica “é uma economia que usa os recursos renováveis (…) com um ritmo que não exceda sua taxa de renovação e que usa os recursos esgotáveis (…) com um ritmo não superior ao de sua substituição por recursos renováveis” (9).

Lester Brown publicou, em 2001, a obra Ecoeconomia: construindo uma economia para a Terra (10). Depois de mostrar a destruição que vem ocorrendo e como ela vai se acelerar se não mudarmos, ele propõe outro tipo de economia: desde a mudança da matriz energética até a indústria que deveríamos ter, a agricultura etc. (11). Esses e vários outros pensadores estão estudando, buscando e propondo outras formas de viver e trabalhar.

A Via Campesina, organização mundial que reúne um conjunto de movimentos de trabalhadores rurais, propõe um modelo de agricultura radicalmente diferente deste dominante: se opõe à dominação das multinacionais, ao agronegócio, aos transgênicos e à dependência dos agrotóxicos. Eles exigem a reforma agrária para que todos os trabalhadores tenham terra e condições para plantar. E propõem um modelo apoiado na agroecologia, nos alimentos orgânicos, na produção diversificada e na agricultura familiar (12).

Crescimento brasileiro

Precisamos reconceituar o desenvolvimento. Não basta acabar com o neoliberalismo e substituí-lo pelo keynesianismo. O capitalismo neoliberal é mais destrutivo que o keynesiano, sem dúvida. O capitalismo keynesiano visa ao pleno emprego – um objetivo que compartilhamos – e permite constituir um Estado de bem-estar social. Mas, para isso, supõe uma produção e um consumo cada vez maiores, de massa.

Hoje, no entanto, esta saída não é mais possível. Para superar a crise de 2008, o governo brasileiro incentivou o consumo, reduzindo ou eliminando impostos e aumentando o crédito, para que as pessoas comprassem mais carros, geladeiras, máquinas de lavar. Essas medidas “dinamizaram” a economia: houve crescimento, o Brasil superou a crise mais rapidamente que outros países. Mas que economia? A serviço de quem? E qual o preço a pagar em termos de destruição das condições que garantem a vida? É isso que precisa ser mudado.

Queremos um desenvolvimento que nos dê vida, e não produtos. Temos de produzir aquilo que precisamos, não aquilo que as empresas querem que consumamos para atender à sua ganância por lucro. Não precisamos de um celular novo por ano, de uma televisão a cada Copa do Mundo, de mais ruas, avenidas e viadutos para garantir a venda de mais carros. Não precisamos de máquinas de lavar, que quebram depois de um ano, ou computadores, que ficam obsoletos depois de alguns meses. Tudo aquilo que precisamos pode ser feito de modo a ter longa duração, a poder ser aperfeiçoado sem ser trocado, a ser consertado em vez de eliminado. Precisamos de reengenharia, sim, mas para que nossas indústrias dediquem-se a utilizar o que já existe para produzir coisas novas e úteis.

Não precisamos de propaganda para nos convencer a comprar um novo produto, muitas vezes supérfluo. Aquilo de que precisamos não supõe propaganda: basta a informação sobre sua finalidade e as substâncias que contêm. Com isso, saberemos decidir por nós mesmos qual dos produtos nos convém.

Sim, é verdade: “outro mundo é possível” – e ele será melhor que o atual.

(1) “A expressão Viver Bem, própria dos povos indígenas da Bolívia, significa em primeiro lugar ‘viver bem entre nós’. Trata-se de uma convivência comunitária intercultural e sem assimetrias de poder (…). É um modo de viver sendo e sentindo-se parte da comunidade, com sua proteção e em harmonia com a natureza (…), diferenciando-se do ‘viver melhor’ ocidental, que é individualista e que se faz geralmente a expensas dos outros e, além disso, em contraponto à natureza”. Isabel Rauber, apud http://isabelrauber.blogspot. com. Acesso em 22/08/2010.
(2) Mas não com megaprojetos de usinas hidrelétricas, destruidores das populações e do meio ambiente. Se fosse feita a repotencialização das usinas existentes e se implementassem a produção de energia eólica e solar, teríamos energia suficiente para tudo aquilo de que o país necessita.
(3) Cf. Michael Lowy, “Ecosocialism, democracy and planification”, 2007 (apud www.europe-solidaire. org); Ecologia e socialismo (São Paulo, Cortez, 2005); Marcos Arruda, Tornar real o possível, Petrópolis, Vozes, 2006.
(4) Cf. Marcos Arruda, op.cit., 2006.
(5) Cf. Paul Krugman. “Quem assa o planeta?”. New York Times. 25/07/2010.
(6) Cf. Carlos Lopes, Ignacy Sachs e Ladislau Dowbor, “Crises e oportunidades em tempos de mudança”, 2010, 15 págs. Disponível em www.dowbor.org.
(7) Cf. Jared Diamond, Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro, Record, 2009.
(8) B lumenau, Ed. da FURB .
(9) Idem, p. 268
(10) E arth Policy Institute, W. W. Norton & Company.
(11) E m 2009, ele publicou o livro Plan B 4.0 – Mobilizing to Save Civilization. Disponível em www.earth- policy.org.
(12) “Plataforma da Via Campesina para a agricultura”. Disponível em www.mst.org.br. Acesso em 26/05/2010
* Ivo Lesbaupin é sociólogo, membro do Iser Assessoria e da direção nacional da Abong (Associação Brasileira de ONGs).  (Le Monde Diplomatique Brasil)

Fonte: Mercado Ético, 14/01

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Érica Sena
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